Mulheres, é preciso abraçar a mãe atípica.
- Luciana Garcia
- 5 de ago. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 5 de ago. de 2024
Ajude a fazer da maternidade atípica um lugar de inclusão feminina e acolhimento para todas as mães

Minha filha é uma pessoa que se relaciona muito facilmente com outras pessoas. Quase todos os dias, ela frequenta um teatro próximo de nossa casa - onde babás se reúnem para levar as crianças para brincar. Ela também frequenta um parque muito bonito e arborizado, que abriga diferentes animais e tem até uma biblioteca infantil, onde é possível ler, desenhar e fazer outras atividades nos dias mais frios. Com menos de dois anos de idade, ela já tem a turma dela, e é reconhecida na rua por pessoas que nem eu conheço. “Olha a Maya” – vão dizendo por onde a gente passa.
É muito gostoso observar o carinho das pessoas com ela, e ver que ela também se esforça para interagir e cultivar as suas amizades. Com a pouca idade que tem, já escolheu suas companhias favoritas e pede pela presença das crianças quando fica muito tempo sem vê-las. Para mim como mãe, é realmente fantástico notar que ela está de fato inserida no meio em que vive. Mas como mãe é um bicho que não para quieto, eu faço, muitas vezes, um esforço descomunal para inserí-la ainda mais em círculos nos quais ela ainda não convive.
Ter um filho que compreende o que está acontecendo a ponto de conseguir desobedecer é em si um motivo de alegria.
Há alguns dias, fomos a um encontro em uma praça com um grupo de mães típicas (se você é mãe e não conhece o termo “mãe típica” provavelmente você é uma delas). Chegando lá, não consegui engatar um papo sequer com as outras mães. Eu fico quieta, escutando tudo. As queixas e desafios dessas mães são super válidas. Elas sofrem, lutam e abrem mão de muita coisa por causa de seus filhos. Mas quando eu escuto suas falas, e coloco numa planilha mental que apelidei de “minha filha, nesta idade, estava...” não dá pra competir (sim, infelizmente não tem como a gente não fazer comparações; me julgue).
Assim como nossos filhos, nós nos sentimos excluídas
Desculpa mães, o nosso rolê é muito mais embaixo. Enquanto você estava se sentindo mal por causa da privação de sono, eu levantava para desligar o apito da máquina de alimentação enteral*. Eu entendo que você sofreu, nossa, como entendo! Talvez entenda até mais do que você. Eu sei que é ruim ter um filho desobediente, mas acredite: ter um filho que compreende o que está acontecendo a ponto de conseguir desobedecer é um motivo de alegria e a gente deve agradecer diariamente por isso.
Eu gostaria de poder dar o meu relato sem que ficasse um silêncio constrangedor no ar.
Olha, eu não quero fazer competição de sofrimento não! Eu só queria fazer parte, me sentir inserida. Eu gostaria de muitas vezes poder dar o meu relato sem que depois da minha fala não ficasse um silêncio constrangedor no ar, ou então que ninguém viesse com uma fala do tipo “mães especiais tem filhos especiais”, sabe?! Eu queria poder contar as coisas da forma leve com que eu escolhi encarar a vida sem que isso causasse desconforto pra você, porque eu sei que se você se sentir desconfortável vai simplesmente se afastar de nós.
Quando a minha filha faz algo que a equipara com uma criança típica, saiba que houve um investimento descomunal ali para que isso pudesse acontecer.
Mãe típica, como a gente faz pra viver em paz? Quero ser sua amiga! Sabe, eu não quero que você finja que a minha filha não tem deficiência, ou me diga que “pra mim ela é uma criança como qualquer outra”, porque nós duas sabemos que não é. Nós duas sabemos (ou pelo menos deveríamos saber) que enquanto você leva a sua filha na natação, eu tô levando a minha na fisioterapeuta pra ela aprender a subir no sofá. As crianças atípicas não aprendem as coisas da mesma forma que as crianças típicas. Elas precisam de treinamento para fazer as coisas mais básicas que você possa imaginar, como brincar de boneca. Quando a minha filha faz algo que a equipara com uma criança típica, saiba que houve um investimento descomunal ali para que isso pudesse acontecer. Então se a minha filha tá falando, andando e brincando com as demais crianças, é porque do lado de cá nós sangramos muito.
Vamos fazer um trato? Quando eu falar sobre qualquer dificuldade que tive ou tenho com a minha filha, você promete que só escuta?! Não precisa falar que você não tem preconceito, que você acha que ela é “supernormal”, ou que o “grau dela é leve” (aliás, não fala isso nunca, por favor. A síndrome de Down não tem grau). E sabe, tá tudo bem você fazer perguntas. Pergunte tudo que te deixa em dúvida. Eu quero te explicar as coisas, e quero que você saiba como tratar as nossas crianças com menos diferença e de forma inclusiva.
Porque a maternidade atípica precisa (e implora) por mais leveza. É duro saber e pensar em todas as batalhas que nossos filhos vão enfrentar durante a vida. E muitas vezes nós gostaríamos de dividir isso não com outras mães atípicas com as quais talvez nem tenhamos assim tanta afinidade. Nós gostaríamos de estar conectadas com aquelas mulheres que eram nossas amigas antes da maternidade. Será que isso é possível?
A minha criança nunca vai ser igual a sua, mas ela merece toda a equidade do mundo. Isso quer dizer que precisamos dar a ela oportunidades que a façam estar no mundo em igualdade de condições com a sua criança. Ela precisa de mais estímulo, incentivo e até de um empurrãozinho. A grande questão é que esse empurrão não pode ser invalidante ou capacitista - como fazer as coisas por ela, por exemplo. Precisamos (eu e você, mãe típica) ensinar os nossos pequenos a brincar com as crianças atípicas respeitando a sua singularidade e encorajando essas crianças a conviver com as diferenças.
Nós, mães atípicas, precisamos também ser abraçadas pelas mulheres com as quais nos identificamos, aquelas que caminharam tanto tempo ao nosso lado. Para que isso aconteça, você precisa se aproximar, estar interessada, perguntar. Porque as diferenças existem e sempre vão existir. E nós não queremos viver numa bolha, isoladas. Todo mundo ganha quando aprende a lidar com a diversidade. Me dá um abraço?
*Máquina de alimentação enteral é um aparelho usado para o controle da descida do alimento (líquido) por um cano (sonda naso-gástrica) que é acomodado diretamente no estômago de um paciente que não pode ou não consegue se alimentar por conta própria.
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