Madrasta sim
- Luciana Garcia
- 16 de jun. de 2021
- 5 min de leitura
amor de verdade não exclui, multiplica.

O tapa que mais dói é aquele que você não está esperando.
Semana passada levei um tapa moral daqueles. Uma violência verbal, daquelas que vem de onde você menos espera, e que te pega desprevenida, naquele momento em que você tá assobiando e andando pela rua, sabe como?! Pois é. Já já quero falar sobre isso. Mas antes preciso pedir desculpas pela minha ausência, pois tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo. E com tempo colocarei tudo em dia por aqui, pois muitas das coisas tem a ver com este canal. Mas voltando.
Se você é alguém que me acompanha na vida real ou nas minhas redes sociais, sabe que eu tenho duas filhas do coração. A Bárbara (27) filha do meu relacionamento anterior e a Valentina (10) do meu marido atual. Amo essas meninas de todo meu coração. E por conta disso eu me interesso por disciplina positiva, eu converso, eu brinco, eu ajudo e faço de tudo para que elas se tornem mulheres emancipadas, seguras, felizes e potentes. E jamais imaginei que fosse abraçar esse trabalho de mãe dessa forma, antes de conhecê-las. Mas tenho um sentimento de que não faço isso somente por elas, mas pelo feminino como um todo. Curiosamente, as duas chegaram na minha vida com a idade de 7 anos (e eu torço muito para que jamais saiam).
Muito bem. Precisava contar isso para que você guria, que eventualmente chegue aqui desavisada entenda a minha dor. Semana passada, mais precisamente na quinta-feira, eu marquei um horário num cabeleireiro que fica aqui na esquina da minha casa. Por conta da pandemia, estava deixando essa coisa de cuidado pessoal muito de lado, e a minha cabeleireira usual tá com o salão em mudança, é longe, sempre uma função ir até lá. Achei mais prático prestigiar o salão aqui do lado, vai que, né?!
Pois é. Chegou o dia e a hora marcada e como estou numa fase de muito trabalho encavalado, já fui munida de fone de ouvido e livro e kindle pra fazer valer aquele tempão que a gente perde esperando a danada da tinta agir. Mas não teve jeito: o moço me pegou pra cristo e começou a metralhar conversa de uma forma que eu me senti até sem graça de avisar que eu não queria papo.
Aí fico com dó, pois fico imaginando que a pessoa tá carente e precisa desabafar. Eu já tinha ido lá uma vez pra enrolar o meu cabelo pra um evento e ele lembrava de mim. Sempre acho que quando a pessoa faz alguma referência ao pouco que sabe a meu respeito é na intenção de fidelizar o cliente, sabe como?! Pra mostrar que você é importante... Então nesse “papo” onde o moço falava mais que o homem da cobra, ele disse umas duas vezes que era como eu, que eu não tinha filhos... e eu fui deixando. Até uma hora em que ele chegou e disse: porque você não tem filhos, né?! Ah, meu bem, aí deixou quicando eu entro com tudo! Rs... Disse, mais ou menos, porque eu sou madrast... (e de coração queria mostrar pra ela que mora uma mãe aqui dentro) não deu tempo de terminar. Fui interrompida com um sonoro: OLHA AÍ, CLEIDE, O NOME JÁ DIZ TUDO! Eu sei como vocês são. Vocês se fazem de boazinhas na frente do “boy” pra mostrar que estão agradando, mas essa menina não é nada na sua vida...
Gente... para o mundo, por favor! Eu não só queria descer. Eu queria gritar, eu queria rodar uma baiana... mas eu tava lá, cheia de papel alumínio na cabeça, me sentindo uma horrorosa de raíz aparente e corte vencido, nas mãos de uma pessoa que tava me chamando de monstro com todas as letras!
Fiquei sem ação. Eu estava acabada por dentro, derretida, e obrigada a ficar ali sem poder falar muito pelo bem dos meus poucos fios de cabelo.
Nessas horas, baixa em mim a irmã Dulce, e começa a dizer no meu ouvido esquerdo que ele não sabe o que diz, que talvez tenha tido uma referência errada, que não era bem por aí. Mas do outro lado, no meu ombro direito, baixa a ministra Damares dizendo que menino veste azul e menina veste rosa. Nessa hora, sobe um sangue duma cor, que eu não respondo mais por mim. Falei, falei muito, falei tanto.... que ele até disse que entendeu e aceitou. Só que “tanto” ainda é pouco perto de tudo que eu gostaria de dizer sobre esse assunto e que fica entalado na minha garganta por fatos e fatos...
Já ouvi muito absurdo a este respeito. Já ouvi até da minha própria família que “é muito fácil criar o filho dos outros”. Como se eu não fosse parte dessa família. Como se eu não fosse educadora, responsável, amorosa, dedicada. Acho muito curioso o quanto a nossa sociedade endeusa o padrasto presente e massacra sem dó nem piedade as madrastas.
Dentro da minha casa, eu recebo amor diariamente. Muito amor. MUITO. São milhares de bilhetes, cartinhas, presentes, mensagens de WhatsApp, ligações inesperadas, confissões que são só comigo, porque “só eu entendo”. Às vezes me sinto uma travesti dos anos 20, que é obrigada a viver uma vida dupla, porque da porta da minha casa pra fora eu sou uma mulher fútil que faz pose de presente na vida delas pra agradar os outros e mostrar que participa. É como se nada do que eu vivo no meu dia-a-dia fosse real, fosse concreto. “Ah, mas você nem tá mais com o pai dela”, “ah, mas ela tem mãe, né?! Não sei por que você tá preocupada com isso”. É tanto absurdo, tanta violência... mas só quem sente é que sabe. A violência verbal não deixa marcas. Ela é silenciosa. Vai matando as vítimas por asfixia.
Felizmente não sou a única no meu entorno que é madrasta e tenho alguns ombros para chorar. Mulheres que entendem essa dor. Pessoas que saber que Madrasta vem de Máter, e não de má. Até porque se fosse assim, né?! Coitada da Malásia, da Macaxeira, da Mariana...
Quando eu era mais jovem, acho que não dava a mesma atenção que eu dou hoje pra esse assunto. Hoje me incomoda mais. Penso que vamos envelhecendo e nossos olhos e ouvidos vão se embaçando para a superficialidade, mas vão se aguçando para o sutil. E aí dói. E caso você tenha chegado até aqui porque falo de autoimagem, devo dizer que falar de autoimagem passa intrinsicamente pela nossa identidade. E na minha identidade, tem inscrita essa palavra: madrasta. Talvez você, como minhas queridas colegas de WhatsApp do Somos Madrastas tenha ficado revoltada também com esse cabeleireiro (um profissional que, ironicamente, trabalha com a autoestima das mulheres). Eu também fiquei. Mas veja bem, a gente precisa ficar revoltada é com a sociedade, é com cada pequeno espaço em que a gente ouve um absurdo desses e deixa passar. O reconhecimento da Madrasta como mulher digna e amorosa é uma luta de todas nós – não só de quem é madrasta. Estou muito cansada disso tudo, e sei que você também está. Mas esse cansaço só mostra o quanto a gente já lutou e as coisas continuam aí. Há muitos outros sutiãs a serem queimados, minhas amoras – e não podemos apagar essa fogueira.
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