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  • Foto do escritorLuciana Garcia

Vida em Prestação: Reflexões sobre a Maternidade Atípica.

Atualizado: 24 de out. de 2023


uma mãe trabalha no computador em casa com o filho no colo ao mesmo tempo. Sua aparência desleixada é um reflexo da difícil jornada da maternidade atípica.
A mãe atípica de 2023 é multifunção. Imagem: Pexels - Sarah Chai


Preciso parar de comprar as coisas à prestação. Esse foi o primeiro pensamento que me veio à cabeça hoje quando vi um anúncio de uma coisa que eu to precisando. Aí lembrei de uma conversa antiga que tive com o meu irmão, em que eu falava da dificuldade da pessoa que precisa comprar a crédito. É um espiral sem fim, mas muitas vezes o espiral em si é tudo que se tem. E por que estou trazendo isso aqui? Às vezes eu me culpo pela baixa frequência com que escrevo artigos neste blog. Daí penso que tudo bem também; a mãe atípica não conseguiria acompanhar mais que um artigo por mês. Então lembro que eu mesma sou uma mãe atípica - e que a nossa vida é assim: a prestação. Seguimos fazendo as coisas em suadas parcelas, como um interminável carnê das Casas Bahia.



A maternidade quebrando o fluxo da vida


A gente vai fazendo um pouquinho de tudo durante o dia. Trabalha um pouco, cuida da cria um pouco, arruma a casa um pouco, alimenta as redes sociais um pouco, estuda um pouco, cuida da saúde um pouco... tudo assim, picado, espalhado, sem continuidade, sem profundidade. A espiral infinita da maternidade atípica, ou de qualquer maternidade faz com que a mulher entre num redemoinho de eventos que estão conectados e que ao mesmo tempo não estão. No momento em que se engravida, os clientes correm de você, a empresa passa a te colocar no caderninho das possíveis demissões (já que isso só vai poder acontecer depois de cumprida a licença maternidade) e fica cada dia mais desafiador voltar ao ritmo de antes.


A grande espiral


Se você não tem uma rede de apoio gratuita, você precisa de uma babá pra poder trabalhar, e precisa trabalhar pra pagar a babá. Então você fica sem babá e sem dinheiro, tentando entender como essa conta poderá fechar um dia. A gente vai fazendo o que dá e como dá pra poder fazer as coisas que “tem que” e as coisas que quer. Existem também aquelas coisas que precisamos fazer para que algumas coisas que desejamos para o futuro possam se concretizar. São sementinhas que plantamos no jardim da existência (cafona, né?!). Eu, por exemplo, gostaria muito de poder me dedicar exclusivamente ao tema maternidade atípica e entregar tudo e mais um pouco do que estou aprendendo desde o diagnóstico da Maya.


Queria poder dar mais atenção ao podcast, ao livro, ao blog... Mas não dá. Preciso seguir com o meu trabalho na comunicação para subsidiar a vida enquanto as coisas do lado de cá não desenrolam da maneira com que eu gostaria. Esse tempo para se dedicar ao trabalho profissional em si já é algo bem justo, bem apertado. É um trabalho que também vai acontecendo à prestação ao longo do dia. Estamos em 2023, e ainda a carga invisível feminina é algo que atropela a gente como um caminhão levando um patriota pela rodovia.



A carga feminina chega para todas


Antigamente eu pensava que, por estar numa condição de privilégio social (branca, classe média, ensino superior), muitas das coisas das quais eu ouvia as mulheres se queixando eram coisas que não iam me atingir. Coitada. Eu era uma pessoa completamente apartada da realidade pelo simples fato de não querer jogar o jogo. Passei muito tempo da minha vida sem um desejo sincero de ser mãe, tem família e etc. Eu flertava com essa vida, tendo um relacionamento sem um vínculo formal, maternando a minha enteada... tudo num pacote que poderia ser “devolvido” a qualquer momento. Claro que eu não acredito que vínculos e sentimentos sejam coisas descartáveis, mas o fato de não ter, aos olhos da sociedade, nenhum documento que me obrigasse a nada me dava uma falsa sensação de segurança. Corta para mim recebendo o diagnóstico da Maya e pensando: eu vou viver isso? Sim, definitivamente é isso que eu quero. Quando engravidei pela primeira vez, aos 41 anos, entendi que estava disposta a arriscar um mergulho profundo na existência. Eu queria deixar de ser aquela menina egoísta, que só faz o que quer, pra fazer o que aparecer pela frente.


Quando engravidei pela primeira vez, aos 41 anos, entendi que estava disposta a arriscar um mergulho profundo na existência. Eu queria deixar de ser aquela menina egoísta, que só faz o que quer, pra fazer o que aparecer pela frente.

Costumo dizer que aderi ao desejo de ser mãe para viver a experiência humana por completo. E o ser humano historicamente, na sua caminhada evolutiva, ele não escolheu desenvolver a agricultura, fazer moradias, viver em sociedade. Ele PRECISOU fazer isso. E hoje, estamos tão afastados das nossas necessidades primárias que podemos nos dar ao luxo de escolher o que queremos e o que não queremos viver.



Ironias que só a maternidade atípica te reserva


Bem, tudo isso pra lembrar a mim mesma que a vida em prestação é fruto de uma escolha que eu fiz. Então assim vou seguir, fazendo um pouco de tudo até que o jogo me permita avançar 3 casas e dar sequência a todos os projetos com mais estrutura. Esses dias uma pessoa que eu gosto muito falou : “acredite no processo é o c*r4alh0”. Eu acredito no processo. Ou melhor, acredito na jornada. E a maternidade atípica me fala muito diariamente sobre isso, sobre a construção.


A vida do lado de cá é um dia de cada vez.

- Será que ela vai andar?

- Vai andar.

- Quando?

- Quando ela estiver pronta. Enquanto isso, você dê a mão, segure na cintura, ensine a se equilibrar.

- Por quanto tempo?

- Pelo tempo que der, pelo tempo que você tiver.


Um diálogo que poderia ser tranquilamente sobre o desenvolvimento atípico da minha criança ou sobre a minha vida. Quando olho para as mães do futuro, vejo que é possível sim fazer as coisas se assentarem no caminho e restabelecer uma rotina profissional prazeirosa. Quando olho para as mães atípicas, vejo o quão mais desafiador é essa jornada para quem tem filhos com deficiência. Ironicamente, o prazer de acompanhar as pequenas e custosas conquistas da cria é algo indescritível. Um preço que se paga; em suadas prestações.

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