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Rever o passado para orientar o futuro: lições das “Famous Five” e do atraso histórico nos direitos humanos das pessoas com deficiência

  • Foto do escritor: Luciana Garcia
    Luciana Garcia
  • 24 de out.
  • 5 min de leitura

Atualizado: há 3 dias


Recorte do jornal "Farm and Ranch Review" em preto e branco, onde foi publicado o artigo "Now That We Are Person" ou "Agora que Somos Pessoas", escrito por Nellie L. McClung. Acima do artigo, uma moldura que lembra um porta-retratos rebuscado apresenta a imagem em 3x4 das "cinco mulheres de Alberta" que assinaram o manifesto.

Em um passado não tão distante



Em 1929, cinco mulheres canadenses — Emily Murphy, Nellie McClung, Irene Parlby, Louise McKinney e Henrietta Muir Edwards (conhecidas como The Famous Five, The Valiant Five ou ainda The Alberta Five) — se recusaram a aceitar uma resposta hedionda que parecia “natural” para a época: que mulheres não eram “pessoas” perante a lei.


Depois Emily Murphy se tornou em 1916 a primeira juíza do Canadá, um advogado cujo nome não merece ser perpetuado pela história questionou a Suprema Corte, alegando que segundo as leis canadenses e britânicas da época “mulher não é pessoa”.  


Foi então que as “famosas cinco” levaram aos tribunais uma pergunta que hoje nos parece óbvia: “a palavra ‘pessoa’ inclui mulheres?”. O caminho para esta resposta foi longo, duro e, sobretudo, revelador. Só quando o Conselho Privado em Londres decidiu que sim, mulheres são pessoas, o Canadá deu um passo público rumo ao que já era fato na vida real: mulheres sempre foram sujeitos de direitos, agentes de mudança, cidadãs.


Essa virada não foi apenas jurídica; foi simbólica e política. Ela expôs a engrenagem do preconceito institucional — aquela que naturaliza a exclusão e empurra grupos inteiros para as margens, chamando isso de “tradição”, “costume” ou “é assim que as coisas são”. Por conta de episódios como este, precisamos sempre revisitar o passado: pois ele guarda não só as feridas, mas as chaves para destravar nossas dores contemporâneas.

 

“Excluir as mulheres de cargos públicos é um resquício de tempos mais bárbaros.” — Lord Sankey, 1929

 


O que a história das Famous Five ensina sobre a marginalização contemporânea

 

Costumo citar em minhas palestras um fato curioso da história que não cansa de me chamar a atenção. A Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiência só foi escrita 27 anos após a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Isso mostra o quanto marginalizamos a pessoa com deficiência.


A Declaração Universal dos Direitos Humanos é de 1948. A Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiência, um marco da ONU, é de 1975. Entre uma e outra, um silêncio de décadas e a constatação de que a pessoa com deficiência é ainda, excluída da categoria de “pessoa”.


"Passamos 27 anos sem nem perceber que não considerávamos as pessoas com deficiência como um grupo sem direitos" - Luciana Garcia

Esse intervalo de tempo é mais que cronologia e história; é sintoma. Ele revela:


  • Quem a sociedade considera “universal” quando fala em “direitos universais” — e quem fica para depois (e já diz o ditado: depois é nunca).


  • Como o capacitismo opera: não apenas em atitudes individuais, mas em lacunas legais, orçamentárias e institucionais que perpetuam barreiras.


  • Que o progresso não vem com a passagem do tempo: ele precisa de diálogo, organização, litigância estratégica, narrativas públicas e, muitas vezes, coragem para fazer a perguntas incômodas à lei, à política e à cultura.

 


“Pessoa” ainda não é uma palavra neutra


A história das Famous Five nos lembra que “pessoa” é um termo disputado. Na Grécia antiga, o próprio conceito de cidadão era usado para referenciar um tipo muito específico de indivíduo de direitos.


Termos que hoje consideramos universais, já foram usados para excluir mulheres, pessoas negras, povos originários, pessoas com deficiência. Sempre que um grupo precisa pedir para ser reconhecido como pessoa — ou para provar que pertence ao “universal” —, há algo estruturalmente (muito) errado.


No campo da deficiência, isso se traduz em três deslocamentos fundamentais nos quais precisamos avançar urgentemente:


  1. Do modelo médico para o modelo biopsicossocial: o problema não está no corpo, mas nas barreiras impostas pelo ambiente, pela comunicação, pelas atitudes e pelos sistemas.


  2. Do cuidado tutelar para a autonomia com apoio: pessoas com deficiência não são objetos de proteção, mas sujeitos de direitos — com voz, escolha e participação.


  3. Da mãe atípica de “coitada” e “guerreira” para peça-chave para a emancipação, capacitação e dignidade da pessoa com deficiência.

 


Por que revisitar o passado muda o nosso futuro


Olhar para trás nos dá ferramentas práticas para agir agora:


É preciso dar nome aos bois. Assim como o argumento “mulher não é pessoa” parecia razoável a muitos em 1929, certas falas de hoje como “não há orçamento”, “não dá para adaptar”, “é uma questão minoritária demais”, “não dá pra fazer tudo” ou “sempre foi assim” — funcionam como travas simbólicas. Nomeá-las como barreiras atitudinais é o primeiro passo para desmontá-las.


Aprender táticas que funcionam: articulação entre movimentos, uso estratégico da mídia, judicialização de atos capacitistas e discriminatórios de forma geral, construção de alianças políticas e, principalmente, narrativas que humanizam.


Ter a acessibilidade (atitudinal e arquitetônica) como premissa desde o início, não “custa caro”, pelo contrário: evita retrabalho, amplia alcance e melhora a experiência para todo mundo.



Do símbolo à prática: o que mudar agora


Para que “pessoa” inclua, de fato, TODAS as pessoas, é preciso transformar intenções em rotinas. Alguns movimentos concretos:


  • Acessibilidade universal como padrão

    • Comunicação em linguagem simples, legendas, audiodescrição e Libras.

    • Ambientes físicos com rotas acessíveis, sinalização tátil e visual.

    • Plataformas digitais compatíveis com leitores de tela e navegação por teclado.


  • Participação real e paga

    • Pessoas com deficiência em conselhos, comitês e cargos de decisão — com remuneração, não voluntariado simbólico.

    • Cocriação de políticas e serviços desde a fase de diagnóstico.


  • Formação contínua e anticapacitista

    • Treinamentos regulares para equipes, com foco em atitudes, linguagem e desenho inclusivo.

    • Metas, indicadores e transparência pública sobre acessibilidade e inclusão.


  • Orçamento e responsabilização

    • Linhas orçamentárias específicas e auditáveis.

    • Mecanismos de denúncia e correção, com prazos e consequências claros.



Maternidade atípica: onde a política encontra a vida


No trabalho com famílias e na maternidade atípica, a experiência vivida pelas Famous Five no passado, volta à vida no cotidiano: em escolas que ainda “não estão preparadas”, em sistemas de saúde que não escutam a mãe, em políticas que presumem incapacidade em vez de garantir apoios para a autonomia.


Rever a história com olhar crítico é se recusar a repetir a exclusão. É defender que cada criança, cada mãe, cada família seja reconhecida como sujeito de direitos em todas as políticas públicas.



Dos direitos humanos à humanidade de fato


As cinco mulheres canadenses escancararam a misoginia da época com uma pergunta simples: “por que ‘pessoa’ não incluiria mulheres?”. Hoje, a pergunta que nos move é igualmente clara: por que ‘pessoa’ não incluiria, desde sempre e por princípio, as pessoas com deficiência?


Por mais que ainda se diga que muito mudou, a resposta verdadeira não está apenas na filosofia, mas no orçamento, no projeto arquitetônico, no design do serviço, no edital, na vaga de trabalho, no contrato, na sala de aula, na reunião.


Está em cada decisão que transforma reconhecimento  (ou não) em prática. Rever o passado não é nostalgia, é método. É o caminho mais honesto para orientar um futuro em que “pessoa”, finalmente, signifique todo mundo.


créditos:


Por Luciana Garcia

Jornalista, palestrante e especialista em culturas inclusivas. Fundadora do movimento Maternidade Atípica, que atua pela conscientização sobre deficiência, maternidade e equidade social. www.maternidadeatipica.com.br

 

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